DEFESA DO MONUMENTO ÀS BANDEIRAS: UMA OBRA MODERNISTA

Há um debate acerca dos monumentos de São Paulo após os protestos de Bristol na sequência dos movimentos antirracistas iniciados nos EUA pela morte de George Floyd. Um dos marcos em discussão em terras paulistas é o Monumento às Bandeiras, obra sem qualquer caráter segregacionista. Aliás, planejado e executado por autor em movimento intelectual avesso ao racismo e de enaltecimento ao indígena brasileiro. Essa discussão torna clara a necessidade de saber a origem dos monumentos para que as pessoas não combatam a própria ideia que professam.

O que fica evidente na discussão é que a metrópole paulista anda muito ocupada com a subsistência num mundo corporativo, de comércio, de serviços e de produção, não reserva tempo para enaltecer a sua  pluralidade, resgatar a própria cultura em comum. O habitante de São Paulo acabou por deixar a história da cidade e a sua importância para a construção do Brasil esquecidas. 
Não podemos fazer julgamentos por rótulos, mas pelo papel de cada personagem. Para o julgamento dos monumentos, devemos  rever a origem da obra.

Sua inspiração é modernista, momento em que a intelectualidade brasileira passou a rejeitar o patriarcado do período imperial, de ver que o povo brasileiro nada mais é do que a síntese de colonos brancos com índios de várias nações em solo brasileiro e negros. Há a exaltação da origem do povo nas próprias expressões "Tupy or not Tupy" usado no manifesto antropofágico, os quadros da época enaltecem o povo e não uma figura histórica. As ideias da intelectualidade dos anos 20 foram expressas em arte.

A ideia efervescente no período dos modernistas é que seja quem for e a que classe pertencer, no Brasil a cultura é toda mesclada, o que pressupõe a existência de cada um dos elementos culturais originais de formação do País.

Algo de extremamente importante acabou sendo a Semana de Arte Moderna, versão artística e intelectualizada da atualização das ideias brasileiras aos novos tempos de então, altamente tropicalizada. Esse movimento intelectual acaba se dando 2 anos antes de São Paulo ser bombardeada na revolução de 1924 contra as atitudes oligárquicas e repressivas da presidência. Em poucos anos, começa em São Paulo uma revolta que gera uma parte importante da coluna Prestes. Em 1932, luta-se novamente contra a ditadura, ainda que outros interesses estejam também por trás da revolução constitucionalista. Com a retomada da república razoavelmente democrática  em 1946 (ainda não existia o voto universal), aquelas ideias surgidas nas ondas de 1922 acabam por ter um espaço maior durante os anos 40 e 50.

No 4o Centenário de São Paulo, não só haveriam comemorações, mas marcas da São Paulo metropolitana. É nesse contexto que se encontra a obra de Victor Brecheret em destaque, terminado nos anos 50 mas concebido nos anos 20.


No caso do Monumento às Bandeiras, enalteceu-se algo em comum no Brasil inteiro e que também é de São Paulo, que são os povos que formaram o Brasil. A saída de colonos para Laguna em Santa Catarina, para Minas Gerais, para Goiás, para o Mato Grosso, é um movimento que é a síntese do esforço do povo brasileiro que é representado sim por colonos barbados em cavalos que são a expressão da mistura do branco e tupi (ver a concepção de Tito Lívio Ferreira ao falar dos bandeirantes como lusotupis, ideia também encontrada na obra de Pedro Doria e Jorge Caldeira), mas também por negros, religiosos e índios. A escultura assume realidades históricas. Uma delas é que o deslocamento e a instalação em novos limites do Brasil não é algo fácil, requer esforço (daí a musculatura dos personagens esculpidos), há aflição, doenças e morte.

Há drama e obstáculos imensos, mas os colonos brasileiros instalam-se em todos os cantos com o uso dos barcos a partir dos rios (referência às monções).

Note que o contexto dos modernistas, como Brecheret, é que a assimilação de culturas para a criação da nova cultura se dá a partir do uso do mito indígena, pode-se pensar nos relatos dos viajantes (Hans Staden), nos estudos históricos e antropológicos sobre o significado para os guerreiros de devorar seus prisioneiros (Luiz Koshiba) ou  na lenda de Tamacavi em que os guerreiros queriam absorver a força do grande guerreiro (https://nuhtaradahab.wordpress.com/2012/02/03/o-indio-na-literatura-brasileira-estante-de-livros-8-final/), devorando-o, daí a insistência na palavra antropofágico. Os modernistas queriam a força dos antigos e das novas escolas europeias para criar uma síntese nacional usando o filtro da cultura indígena. Na revista antropofágica, fala-se inclusive na importância do aprendizado do tupi com ensinamentos de algumas palavras e prefixos. Victor Brecheret não só estava no mesmo período histórico e de pensamento, como fez parte do movimento modernista e da Semana de Arte de 1922 , onde expôs 12 obras, dentre elas uma maquete da futura obra (ver Márcia Camargo e Raul Bopp). Tão imbuído da importância indígena, que a inspiração do escultor foram os temas da cerâmica marajoara, o que também pode ser conferido na página 24 do livro "Em Cada Canto de São Paulo Um Encanto de Brecheret".

Claro que há um elemento histórico inegável que era a realidade do período na época da colônia, em que o artista não falseia o papel de cada personagem no período da expansão colonial  - que era afirmação da coroa portuguesa -, apesar disso a escultura assume o viés da construção coletiva (há barbados - simbolizando o branco luso-tupi - também em meio ao bloco de pessoas no movimento para o interior com os indígenas e negros). 

Curiosamente, não se pode criticar a escultura por qualquer caráter contrário aos povos nativos. O momento histórico de concepção da obra é de enaltecimento da cultura indígena! Não acredite em mim! Confira você mesmo: veja o que escreviam os modernistas no manifesto antropofágico que pode ser conferido na biblioteca brasiliana da USP no endereço eletrônico aqui ao lado (https://digital.bbm.usp.br/handle/bbm/7064).

Ressalte-se o monumento às Bandeiras enaltece a construção coletiva com todos os povos sendo fundamentais na construção do Brasil. São Paulo é o mero ponto de partida. Não há um paulista, mas pessoas de várias raças no enfrentamento da natureza para a construção de um só Brasil. Claro que na época do término da obra havia uma noção de que os bandeirantes eram paulistas. Mais uma construção ideológica do que uma realidade. Os colonos que aqui chegavam eram portugueses e espanhóis (época da União Ibérica). Mas não só: ingleses, franceses, belgas, alemães, vários deles deixaram relatos sobre o Brasil na Europa. Não existia um paulista, existia um modo de vida colonial que era a síntese da cultura tupi com alguns elementos europeus (o cavalo foi trazido pelos europeus, por exemplo). O europeu não sobreviveria nas longas travessias sem adotar o modo de ser tupi. Não deixemos em termos abstratos, a tecnologia de construção do batelão (ver Sérgio Buarque de Holanda), barco feito inteiriço de um só tronco para as viagens a partir do Rio Tietê era tecnologia indígena. Nada mais justo, em meio ao monumento, do que deixar os indígenas mais próximos da tecnologia que permitiu as viagens e aventuras dos colonizadores no desbravar do interior. Também vale ressaltar que não existiam médicos nas viagens. Quais eram as ervas medicinais, que plantas poderiam ser ingeridas em período de escassez de alimentos,  que vegetais acumulavam água nos trechos sem riachos e de calor intenso eram conhecimentos dos povos nativos. Não só o modo de vida,  mas a própria língua. Há mais de uma referência histórica de que os habitantes de São Paulo só falavam a "língua geral" - o tupi (exemplificativamente, Domingos Jorge Velho só falava tupi, segundo Carvalho Franco).

Assim, a obra de arte representa, ao contrário de outros monumentos  do mundo (https://pensamentoparaoseculoxxi.blogspot.com/2020/07/esculturas-representativas-de-seus-povos.html), a construção de um povo, numa cultura metropolitana  de inspiração modernista e plural. São os elementos culturais que levam à síntese do povo e não havendo a negação de nenhum, não há o elemento racista. Sua inspiração também é altamente republicana, pois não enaltece nenhuma pessoa, nenhum líder, nenhum colono que chamamos de bandeirante em especial. Da obra é possível depreender-se o que se tornou uma realidade: é o conjunto de esforço de todas as raças que determinou a colonização e a formação do Brasil.

A obra tem uma característica singular: ela se modernizou sozinha. Ao ficar em frente ao parque do Ibirapuera, ponto turístico de São Paulo, pode-se testemunhar que muitas pessoas não se contentam em olhar a obra, mas insistem em ter o contato com ela, logo, é comum ver intrépidos escaladores que sobem no conjunto de estátuas e tiram suas "selfies" ao lado de suas partes preferidas (atitude não recomendável pela segurança do turista e da manutenção da obra de arte).

Em conclusão, em que pese ser um conjunto de estátuas dedicado aos 400 anos do Centenário de São Paulo, o Monumento às Bandeiras é uma obra de arte modernista que enaltece a formação do nosso povo como síntese de raças para a formação do Brasil territorial e da cultura brasileira. Essa cultura que é a mistura da cultura de cada povo com as peculiaridades de cada região. Portanto, deve-se mais é contextualizar a sua concepção artística, divulgar o  seu significado e mantê-lo fisicamente onde se encontra. A cultura expressa em arte deve ser aberta a todos em praça pública e não negada ou escondida. Seu significado é o papel do conjunto das raças e não a discriminação. Usando uma frase de impacto: antes de ressignificar o Monumento às Bandeiras, é preciso significá-lo.



Referências

Dicionário de Bandeirantes e Sertanistas do Brasil, Francisco de Assis Carvalho Franco, Belo Horizonte/São Paulo: Itataia/Univ. de São Paulo, 1989, p. 430.
Em Cada Canto de São Paulo Um Encanto de Brecheret, Sandra Brecheret Pellegrini, São Paulo, Noova America, 2009, p. 24.
História de São Paulo, Tito Lívio Ferreira, vol 1, [...], p. 78
1565: Enquanto o Brasil Nascia, Pedro Doria. Rio de Janeiro: Harper Collins, 2017, posição 1666 de 3212 em e-book.
Movimentos Modernistas no Brasil: 1922-1928, Raul Bopp, Rio de Janeiro: José Olympio, 2012, p. 37.
O Índio e a Conquista Portuguesa, Luiz Koshiba, 4a Edição, São Paulo: Atual, 1994, pp 21 a 23.
São Paulo na Monarquia Hispânica, Rafael Ruiz, São Paulo: Instituto Brasileiro de Filosofia e Ciência "Raimundo Lúlio", 2004, fl. 179. 
Os Primeiros Brasileiros, Tiago CORDEIRO, São Paulo: Abril, 2018, p. 41.
Revista da Antopofagia, 1a Dentição, Anno 1, 1928/1929.
Monções, Sérgio Buarque de Holanda, São Paulo, Companhia das Letras, 2014, p.48.
Semana de 22: Entre Vaias e Aplausos. Márcia Camargos, São Paulo: Boitempo, p. 86.
Viagem ao Brasil, Hans Staden, tradução de Albret Löfgren, notas de Teodoro Sampaio,  São Paulo:Editora Martins Claret, 2006, p. 76.
Viagem pela História do Brasil, Jorge Caldeira, Flávio de Carvalho, Cláudio Marcondes, Sérgio Goes de Paula, [São Paulo]: Companhia das Letras, [...] p. 33.


Referências na Internet:

Manifesto Antopofágicohttps://digital.bbm.usp.br/handle/bbm/7064, consultado em 16 de julho de 2020.
Monumento aos Descobrimentoshttps://pt.wikipedia.org/wiki/Monumento_aos_Descobrimentos , consultado em 14/07/2020.
O Índio na Literatura Brasileira (Estante de Livros 8) final, https://nuhtaradahab.wordpress.com/2012/02/03/o-indio-na-literatura-brasileira-estante-de-livros-8-final/, consultado em 16 de julho de 2020.


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