UM LIBERTADOR DA AMÉRICA NA EUROPA

Como seria a recepção de um libertador da América na Europa?

É preciso ter algumas premissas para entender a situação.
Relembra-se que a independência da América Latina em muito foi resultado das guerras napoleônicas. A invasão francesa na Espanha deu a oportunidade para que muitas colônias dividissem a fidelidade ao antigo regime e ao novo rei (José Napoleão), dando oportunidade aos libertadores. No caso brasileiro, a posterior invasão de Portugal pelas tropas napoleônicas foi a razão da fuga da Família Real Portuguesa e sua instalação no Rio de Janeiro que levou a sede do governo português ao Brasil, ao  estabelecimento de D. Pedro no sul do equador e posterior independência do Brasil.
Mas o que aconteceu na Europa nesse período? Com a queda de Napoleão foi arquitetada uma saída conservadora para os diversos países: o concerto das nações fortaleceu os reis vencedores e trouxe de volta os antigos reis ou seus descendentes, conforme o acerto no chamado Congresso de Viena. A nova ordem era conservadora, mas, no médio prazo, não impediu a criação de movimentos liberais fortes. Logo, existia uma era conservadora e repressão aos liberais. Inicialmente, as nações se uniram contra a França, mas com a restauração da dinastia Bourbon e a ascensão de Luís XVIII, ela também passou a compor o bloco conservador. Como consequência, dessa política alinhada em favor dos reis, houve uma série de congressos internacionais para definir o destino de várias nações que tentavam impor regimes de igualdade ou monarquias constitucionais aos seus soberanos. O Congresso de Verona (1822) acabou por decidir a intervenção francesa na Espanha para inibir os ideais liberais e restaurar o governo autocrático do, também Bourbon, Rei Fernando VII.

Se de um lado as metrópoles de cada colônia tinham o interesse formal em mantê-las e apoio formal de outros monarcas, por outro lado, a independência da América abria novas oportunidades comerciais para as grandes potências. Nesse jogo, nem tudo era coerência com o interesse mais visível.

Dadas as premissas vamos ao personagem libertador.
José Bonifácio de Andrada e Silva foi o herói da resistência portuguesa à invasão francesa, ministro forte de D. Pedro I no Primeiro Ministério Brasileiro e, após a independência, passou a viabilizá-la politicamente e militarmente. Nesse ambiente, certamente fixou aliados entre ingleses e franceses e acompanhava os acontecimentos na América Espanhola que iniciara o processo de independência antes do Brasil. O patriarca da independência também era maçon, o que lhe deve ter aberto outros aliados.
Conquistada e consolidada a independência, a roda da vida mudou. D. Pedro I foi cedendo maior importância aos conselhos da Marquesa de Santos e ao partido pró-portugueses. Ambos os grupos eram inimigos de José Bonifácio e foram atores ativos na queda de seu ministério e depois, no fechamento do nascente legislativo. Determinaram o exílio de José Bonifácio.


No momento do exílio, segundo o historiador José Honório Rodrigues, a embarcação seria a charrua Lucônia (navio em péssimas condições), tinha a missão de levar Bonifácio e outros exilados (José Bonifácio, dois de seus irmãos: Antônio Carlos Ribeiro de Andrada e Silva e Martim Francisco Ribeiro de Andrada, e mais José Joaquim da Rocha, Francisco Gê de Acaiaba Montezuma, além das respectivas esposas, e o padre Belchior Pinheiro de Oliveirapara o Havre, no norte da França. Mas, conta que o comandante do navio tinha uma missão secreta de levar José Bonifácio e seus aliados exilados para Lisboa. Nenhuma tripulação brasileira seria capaz da condução dos ilustres exilados para a condenação. Aos olhos de Portugal e dos vários desterrados e exilados portugueses pelo odiado Ministro Brasileiro, José Bonifácio era um revoltado e subversivo. Em Portugal, teria um fim indigno de sua importância para o Brasil e o mundo.

No entanto, o imediato do navio insistiu no cumprimento da missão oficial e não na missão secreta. O navio passou pela costa portuguesa, mas D. João VI temia consequências políticas da captura de José Bonifácio para D. Pedro I. O navio seguiu até a cidade espanhola de Vigo, onde aportou para obter mantimentos e concerto. Nesse momento, a Espanha soube que um "revoltoso subversivo" estava em seu solo. Imediatamente começou uma disputa.

Portugal passou a reclamar o que se poderia chamar de extradição do seu inimigo público. A Espanha não tinha simpatia por personagem que fazia com Portugal o mesmo que lamentava em suas ex-colônias. Mas, ao mesmo tempo, José Bonifácio nada significava para a Espanha. Por outro lado, a França vigiava todos os passos de Bonifácio. A correspondência do cônsul da França no Brasil alertou suas autoridades para a chegada da forte personalidade brasileira ao continente europeu. Os franceses queriam ter o controle sobre o destino do potencial futuro aliado. Já os ingleses admiravam José Bonifácio e reclamavam a sua imediata libertação.
Enquanto havia a discussão diplomática, tardiamente Portugal mandou um navio para a Espanha para capturar a charrua Lucônia. Diante da tensão generalizada e a iminência de chegada do navio de guerra, a Espanha cedeu à pressão inglesa e francesa e deu passaporte para os prisioneiros da Lucônia para que, por terra, chegassem à França. Foi o que ocorreu. 



Quando os brasileiros chegaram à França, um inspetor francês foi designado em Bordeux para seguir os passos dos brasileiros. José Bonifácio já estava mais velho e passou a  comportar-se até que as autoridades francesas se convenceram da ausência de perigo e foram afrouxando o controle até que os exilados pudessem voltar ao Brasil. Durante o período de exílio, Bonifácio produziu poesias e textos, foi atacado pela imprensa francesa e escreveu sua própria defesa em jornais da época.

Mas por que não foi para a Inglaterra? Por que para a França?

A Inglaterra teve como Ministro das Relações Exteriores no período da independência da América Latina o Senhor George Cunnings, que fora embaixador da Inglaterra em Portugal. Sua política era pragmática. Temia o aumento da influência dos norte-americanos na América Latina e desejava manter o comércio com as ex-colônias portuguesas e espanholas. Fez acordos comerciais, mas tentou mediar acordos entre metrópoles e colônias em independência, evitando, inicialmente, o reconhecimento formal aos novos países. Porém, em especial, em relação a Portugal, aliado da Inglaterra, não poderia simplesmente reconhecer a independência do Brasil. Adotou a política de não intervenção, numa falsa neutralidade que não se opunha à guerra de reconquista das metrópoles, mas incentivava tanto a independência na América como o reconhecimento do fato pelas antigas metrópoles. Os ingleses viam a figura forte e confiável de José Bonifácio como o único a conseguir tocar a guerra de independência. Uma vez exilado o brasileiro, tinham a simpatia pela figura mas não podiam desafiar abertamente Portugal. Logo, deram a proteção diplomática aos Andradas, mas sem criar impasses frontais com D. Pedro I e com Portugal.

Por sua vez, a França tinha um rei alinhado com a ordem conservadora, mas seu ministro das relações exteriores também era pragmático - Chateaubriand. Sabia das vantagens comerciais e influência francesa na América Latina. Embora a França formalmente nada tinha a perder com o reconhecimento da independência das ex-colônias da América Latina, ajudou a restaurar o rei Fernando da Espanha. Alinhando-se ao rei, não podia assumir posições pró-independência contrariando o seu aliado Bourbon da Espanha. No entanto, nutria a ideia de formar quatro reinos na América com príncipes da família Bourbon, ainda que do ramo espanhol. D. Pedro tentou valer-se desta teoria francesa que, a princípio, ganhou a simpatia não aberta da França. Segundo José Honório Rodrigues, houve um acordo em que o Brasil entregou desertores franceses e levantou embargos de comércio de navios franceses, em troca a França vigiaria os Andradas. Naturalmente, ter o controle de libertadores defensores da monarquia poderia ser útil no futuro, caso se tentasse mesmo criar as sonhadas monarquias "bourbônicas" na América Latina. Relembra-se que essa tese foi retomada no período de Napoleão III na tentativa francesa de criar a monarquia mexicana que efetivamente se instalou por alguns anos.
Interessante notar que Chateuabriand foi diplomata na América e também é conhecido por sua produção política e literária tendo escrito, entre outros, a obra "Viagem à América" em que defende o princípio monárquico no  Novo Mundo (https://www.poesies.net/chateaubriandvoyageamerique.txt).

Meio refém, meio reserva estratégica, essa foi a história de um libertador da América na Europa conservadora.



Bibliografia e Sugestões de Leitura:

Fernando VII da Espanha, https://pt.wikipedia.org/wiki/Fernando_VII_de_Espanha, consultado em 17 de janeiro de 2018. 

François-René de Chateaubriand, https://pt.wikipedia.org/wiki/Fran%C3%A7ois-Ren%C3%A9_de_Chateaubriandconsultado em 17 de janeiro de 2018. 

George Canning, https://pt.wikipedia.org/wiki/George_Canning, con-sultado em 17 de janeiro de 2018. 

Independência: Evolução e Contra-Revolução – A Liderança Nacional, José Honório Rodrigues, Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1975, p. 26.

Independência: Evolução e Contra-Revolução – A Política Internacional, José Honório Rodrigues, Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1975, pp. 12 a 22 e 38 a 47.

História da Civilização Ocidental - Do Homem das Cavernas Até a Bomba Atômica: O Drama da Raça Humana, Edward Macnall Burns, vol. II, 23ª Edição, Rio de Janeiro e Porto Alegre: Editora Globo, 1981, p. 640. 

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